O próximo coordenador do Gired (grupo de digitalização da TV digital), que assume a partir do dia 4 no lugar do conselheiro da Anatel Rodrigo Zerbone, terá pelo menos uma tarefa urgente a resolver: recuperar a confiança, de parte a parte, para a tomada das decisões necessárias. O processo de desligamento do sinal da TV analógica em Brasília, que deveria ter ocorrido esta semana mas ficou para o dia 17 de novembro, evidenciou um problema grave do esforço de desligamento, contudo. Não é um dificuldade logística, ou falta de recursos, ou problemas de interferência. O maior problema é a falta de dados sobre a situação real da radiodifusão no Brasil. E se o problema persistir, o desligamento em São Paulo tende a se tornar muito mais crítico.
Ao longo de décadas, por irresponsabilidade, conveniência ou falta de urgência, o Poder Público abdicou de levantar, com precisão, como está o funcionamento do sistema de radiodifusão no Brasil. Existe um levantamento geral feito pelo IBGE sobre o número de domicílios com TVs, mas qualquer coisa além disso depende de informações que chegam do mercado e que são imprecisas ou discrepantes por conta das metodologias utilizadas. Pouco se sabe sobre o grau de atualização tecnológica dos televisores instalados (se são ou não capazes de receber sinais digitais), dos transmissores, sobre a quantidade de pessoas que recebem os sinais exclusivamente via satélite, sobre as pessoas que recebem os sinais por alternativas de TV por assinatura, por pirataria ou simplesmente que não recebem sinal nenhum. Não existe nenhum levantamento efetivo por parte do governo sobre a qualidade dos sinais analógicos e digitais de radiodifusão, se eles estão chegando de fato à população dos municípios, se chegam com qualidade ruim (com chuviscos, fantasmas) ou sobre as áreas de sombra. É fato que ter esse nível de precisão em um país das dimensões do Brasil é complicado mesmo para serviços que têm obrigações de cobertura estabelecidos em contrato ou regulamento, como a telefonia móvel, mas partindo-se do princípio de que a radiodifusão é um serviço de imenso interesse público, seria fundamental ter esses dados (para não falar em dados econômicos ou societários do setor, que simplesmente não existem de forma sistematizada e atualizada).
No processo de liberação da faixa de 700 MHz, vendida pelo governo às teles por mais de R$ 9 bilhões em 2014, foi necessário estabelecer uma política de realocação dos sinais de TV que estavam operando nessa parcela do espectro. E em muitos casos essa realocação passa pelo desligamento do sinal analógico, induzindo a população a passar para a TV digital. Como parte dessa política, as empresas de telecomunicações estão distribuindo milhões de kits de recepção digital às famílias do Cadastro Único por meio de uma empresa por elas administrada, a EAD (Seja Digital). Também é a EAD que se tornou responsável pela coleta de informações básicas que permitissem aferir o grau de aptidão dos domicílios em relação à capacidade de receber o sinal de TV digital. E é ai que começa a confusão. Radiodifusores e EAD partem de premissas diferentes, citam números diferentes e usam critérios diferentes para defender suas posições, e o governo, sem ter qualquer outro dado, precisa arbitrar sofrendo pressões de ambos os lados. Os radiodifusores alegam, por exemplo, que o mesmo instituto contratado pela EAD (Ibope) para aferir o grau de digitalização tem uma pesquisa semelhante vendida há muito tempo aos radiodifusores (antes mesmo do processo de desligamento começar) e que dá sete pontos percentuais a menos em termos de domicílios capazes de receber o sinal digital. As teles, ao irem a campo para saber por que as pessoas não estão buscando os kits de recepção, constata que o sinal de TV digital simplesmente não chega a muito domicílios, pois há falhas de cobertura expressivas em muitas redes de TV, e sem o sinal ninguém se motiva a mudar para a TV digital.
O próprio número estabelecido para o desligamento (93%) é arbitrário, estabelecido sem nenhum critério, tanto que aceitou-se que 90% seria razoável, pela margem de erro, e em Rio Verde desligou-se com 85%. Se não bastasse esse problema, os critérios de análise dos dados, ora contando televisores do tipo tela fina como digitais, ora contando como analógicos, ora incluindo domicílios com TV por assinatura como aptos, ora considerando apenas os domicílios com TV a cabo, também levam a dados divergentes. O impasse em Brasília se deveu a isso. Em São Paulo, se não houver cuidado, o problema será muito pior.
É evidente que a disputa pelas informações é apenas um pretexto para que cada lado defenda o seu negócio. As emissoras de TV temem perder audiência com a digitalização, porque hoje elas mesmas admitem que a cobertura digital é pelo menos 20% inferior à cobertura analógica. O processo de digitalização também é custoso para as emissoras, que precisam atualizar seus equipamentos de captação de imagens e transmissão.
Já as teles, que gastaram R$ 9 bilhões comprando o espectro, querem garantir que a casa estará desocupada a tempo de iniciarem os seus projetos de implantação da rede 4G na faixa de 700 MHz.
Entre os dois está o Gired, que tem desempenhado um papel importante na mediação desses conflitos. Até aqui, com todas as dificuldades, o Gired está garantindo, juntamente com o trabalho operacional da EAD e com o esforço de divulgação dos radiodifusores, um processo de desligamento da TV analógica mais ou menos dentro do cronograma. Mas os problemas tendem a aumentar em 2017. E a fluidez do processo depende, sobretudo, de informações e critérios em que todos confiem.
Fonte: Tela.Viva